Myriam Fraga
Renasço a cada dia. A cada manhã, renovo minhas penas. Ontem, foram as brasas. Meu corpo frágil, meu ser de indecisa textura, ardeu em chamas, devorou-se, inteiro, ao calor de sua própria fogueira. No fim, restou um pouco de pó, mornas cinzas escuras. Mas ao romper da manhã, os carvões se agitaram. Débil ruflar de asas, um espichar de remígios e, novamente pássaro, me ultrapasso. Para o alto, para o alto! Atrás são cinzas mortas, pó desfeito, uma pequena coivara onde crepitam, ainda, rescaldantes, os restos do braseiro.
Aos poucos, lentamente, recupero os sentidos. Aos poucos, lentamente, reaprendo os caminhos. Me oriento devagar pelas velhas pegadas. Aqui, sem dúvida, já estive. É meu este traço, este espalmado rastro. Sinto que há ainda em mim um vestígio de abismo. Um chamuscado leve, uma fina cicatriz no encontro das asas. E uma lembrança quase morta, uma recordação abafada da ferroada das chamas, do dilacerante calor brotando das entranhas.
Mas, renasci. Renasço todo tempo. E meu tempo é este constante oscilar, este pêndulo esticado entre o toque de morrer e a hora do resgate. Ainda há pouco eu era apenas um montículo de pó, resíduos calcinados. Mas uma nova força revive de minhas brasas, asas soltas no espaço.
Agora, o céu é meu. E todo este dia glorioso, com seu hálito de jasmins, com seu sopro de plumas. Meu é este dia, o espaço deste dia. E a força de viver bate forte nas veias. Respiro com prazer e me engolfo no vento. Mais uma vez retomo meus cantares. Mais um dia! Mais um dia! Sei que breve, de novo, morrerei. Sei que nova mortalha de pó e cinza velará a minha face. Outro fogo me espera, outro mergulho ao cerne da fornalha.
Mas, agora, me equilibro na força de minhas asas. Todo o horizonte me pertence, tudo que embaixo respira e se renova. Ventos brandos do céu, arco-íris, auroras. Um dia, de novo, enfrentarei o holocausto. E novamente arderei até a poeira final, o restolho, o borralho. Mas não importa. Sei que tudo isto é apenas passagem. E renascerei de novo de minhas cinzas. Íntegra e radiante para novas batalhas.
Fonte: http://www.atarde.com.br/materia.php3?mes=03&ano=1998&id_materia=113327. Coluna Linha D'Água do Jornal A Tarde.