quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Entrevista com Myriam Fraga

Myriam Fraga nasceu em Salvador, Bahia, e estreou como escritora em 1964 com o livro Marinhas, publicado pela editora Macunaíma. Além das atividades literárias, Myriam Fraga dedica-se também a atividades administrativas dirigindo a Casa de Jorge Amado desde 1986, ano de sua fundação. Também é membro da Associação Baiana de Imprensa e publicou diversos textos na coluna Linha D'Água do Jornal A Tarde até 2004. Lançou em 2008 o livro Poesia Reunida com o conjunto de sua obra, um presente para os amantes da literatura e da poesia.

BML: Quando conversamos com quem escreve, pensamos imediatamente em como se tornou escritor(a). Como se deu esse processo com você?

MF: Já tive ocasião de falar sobre isso em outras entrevistas. Sempre me interessei por livros, desde muito cedo, antes mesmo de ser alfabetizada. Aliás, lembro que poucas coisas desejei tanto como poder decifrar sozinha aquelas mágicas páginas cheias de histórias maravilhosas. Daí pensar em criar também minhas próprias histórias foi um curso natural. Mas nada foi de repente, foi um longo processo que se desenvolveu à medida que o tempo passava e eu tomava consciência de que aquela era mesmo a minha vocação: labutar com palavras.

BML: Uma outra associação que se faz é entre a habilidade em escrever e a escola. A escola teve alguma influência na sua vontade de se tornar escritora? De que forma?


MF: Acho que não. Aliás, das três escolas que frequentei nenhuma me estimulou em nada para escrever. Mas foi ainda na escola primária, com nove ou dez anos, que escrevi espontaneamente meu primeiro “ensaio”, um pequeno texto sobre o Aleijadinho, escultor mineiro, a partir de coisas que li sobre ele em alguma parte que já não me recordo. Embora, naquela época, eu não tivesse a mínima idéia do que isto significava, foi na verdade um texto de pesquisa, o que chamamos pesquisa. Foi muito elogiado pelos adultos, mas não me satisfez porque não era uma criação minha. Fiz também nessa mesma época um poema inspirado na chama de uma vela durante uma tediosa aula. Essas pequenas aventuras se perderam no tempo, mas ficou aquela sensação de poder criar. Daí só vim a me interessar em escrever na adolescência inclusive através dos indefectíveis diários que também se perderam. Mas só comecei a escrever com intenções de publicar lá pelos 20 anos.

BML: Em Femina, as personagens femininas são inspiradas nas narrativas históricas ou mitológicas, mas reescritas com outra voz. Em sua opinião, a forma e por quem as narrativas foram escritas influenciam na maneira das mulheres se verem ou serem vistas? Comente um pouco sobre isso.

MF: Veja bem, em O risco na pele, de 1979, eu inicio com o poema “A esfinge”, que traz em si o enigma e a chave, a negação e a aceitação. O contraditório, que me parece ser a essência do feminino, ou talvez do próprio ser humano. Reconhecer-se mulher, em toda sua integridade, é uma conquista das mulheres de nosso tempo? Ou será que elas sabiam, desde sempre, que coisa extraordinária é o ser mulher com tudo que isto acarreta?

As personagens femininas que eu venho construindo são personas, máscaras que eu invento, e assumo, para dar testemunho de coisas que talvez eu mesma não entenda e que só possam vir a ser explicadas através do mito.

Mas não vamos esquecer as personagens masculinas, da história e da mitologia, que também povoam meus poemas. Cleise Mendes referiu-se, com muita propriedade, a este aspecto teatral da minha poesia durante o “Seminário Myriam Fraga- Poesia e memória”, realizado em 2008, na Academia de Letras da Bahia..

BML: Vamos falar um pouco de Myriam Fraga leitora. Como você escolhe suas leituras? Qual(is) o(s) autor ou autora(s), tema(s), gênero(s) preferidos?

MF: Não sou uma leitora especializada. Leio de tudo: ficção, ensaios, poesia. Principalmente poesia. Gosto de mitologia, história... Algumas são leituras de obrigação e outras de devoção. Não durmo sem ler pelo menos uma página, ou um poema. É a minha forma de encarar o divino.


BML: Lembrei-me agora de um filme traduzido para o português com o título “O Carteiro e o Poeta”. Esse filme mostrou uma aproximação entre o cinema e a literatura. Um dos personagens representava o poeta chileno Pablo Neruda, e o outro um carteiro que vivia em um pequeno vilarejo da Itália cujo meio de subsistência era a pesca e o pequeno comércio. Inicialmente ele começa a fazer poesia para conquistar uma mulher, para ele o que havia de mais importante naquele momento, mas depois a sua escrita passa a ter um sentido mais político, libertário. Escrever liberta? Fale-nos um pouco sobre isso.


Escrever liberta no sentido em que ajuda a exprimir emoções, a revelar sentimentos, a afirmar condições, a relacionar o indivíduo com o mundo e com seus semelhantes. Neste sentido a escrita torna-se a extensão da fala, é o complemento da linguagem.

A escrita literária, por ser constituída por palavras carregadas de emoção e significado, potencializa ainda mais a sua atuação. Assim escrever também é uma forma de afirmar-se em liberdade e proclamar essa liberdade como direito inalienável.

BML: O que você acha dessa aproximação entre a literatura e o cinema?

MF: São formas diferentes, linguagens diferentes, que podem, eventualmente, se encontrar. Na tradução de obras escritas para a linguagem cinematográfica alguma coisa sempre se perde, como por exemplo, a transformação de “Guerra e paz”, o grande romance de Leon Tolstoi, numa bobagem hollywoodiana. Aliás, a maioria dos romances adaptados não passa no teste. Mas, em compensação, grandes adaptações são feitas a partir de romances medíocres. Mas, veja bem, estou falando como leiga. Sei que o assunto é complicado e já está sendo tratado até em teses de mestrado e doutorado.


BML: Recentemente, você nos presenteou com um livro contendo as suas poesias reunidas. Estão todas ali ou tem alguma a ser publicada?

MF: Tentei reunir o máximo, principalmente a partir de livros publicados anteriormente e já esgotados. Mas na parte de esparsos e inéditos ficaram algumas lacunas, principalmente os inéditos que ainda não considerava inteiramente prontos e que ainda pretendo publicar.

BML:Myriam, fale um pouco sobre a literatura na Bahia, especialmente em Salvador. Como você vê essa relação entre o público e a literatura e também o ensino da literatura?

MF: A literatura baiana sempre foi muito rica, destacando-se no panorama nacional com autores de grande sucesso e prestígio, muitos com obras traduzidas em outras línguas, com textos adaptados para cinema e televisão. Autores novos e talentosos são revelados constantemente, através de concursos literários, mas, paradoxalmente, o movimento editorial é muito tímido, circunscrito apenas a editoras institucionais ou amadoras.

Isto nos remete também a outro problema, a falta de um público leitor, decorrente da falta de incentivo, do baixo nível de escolaridade, do desinteresse na formação de leitores, na carência de bibliotecas com títulos modernos e atraentes.

Uma atuação a se destacar é a das universidades com a adoção cada vez mais abrangente de autores baianos em seus currículos.

Se as escolas de nível médio também fizessem isto de maneira sistemática, um grande passo seria dado no fomento à literatura em nosso estado. A ausência de livros de autores baianos no processo de compra para adoção nas escolas da rede pública é também um enigma baiano que nunca se quis decifrar.

Enfim, publicar livros não é só uma questão cultural, mas uma atividade complexa que também envolve muitos outros setores como a industrialização e o comércio, por exemplo

Esse não é um problema só da Bahia, mas de muitas outras regiões do país, além do eixo Rio- São Paulo. Alguns estados, a exemplo de Minas e Rio Grande do Sul, conseguiram, através de investimentos e políticas adequadas, resolver em parte esse problema, dando oportunidade e visibilidade aos autores locais.