domingo, 14 de agosto de 2011

As Filhas do Falecido Coronel, Katherine Mansfield : Uma leitura sob a perspectiva de gênero.


"É extremamente mais difícil matar um fantasma do que uma realidade."

A epígrafe fez parte de um discurso proferido por Virgínia Woolf para a National Society for Women's Service em 21 de janeiro de 1931 e publicado post mortem em 1942. A reflexão da autora inglesa discute a questão da mulher no campo profissional, demonstrando que os conflitos experimentados pelo feminino acontecem através do tensionamento entre a sua vontade de exercer uma atividade profissional e o modelo que lhe é imposto pela sociedade que a exclui desse espaço. Segundo Virgínia Woolf, a mulher que tenta sair do circuito privado (espaço da casa), esbarra em um espectro que a faz recuar. A autora, que experimentou esses embates, argumenta que se deve matar o fantasma ou Anjo da Casa, como ela mesma chama, aquela voz feminina que tenta fazer a mulher vacilar, fazendo-a lembrar de que não deve desviar-se do "seu" comportamento e missão. É umaa voz que parte de dentro, que atravessou séculos e que vigia a mulher, inibindo-a quando esta intenciona ocupar um outro espaço pré-determinado como não-feminino.

O conto de Katherine Mansfield traz a trajetória de duas mulheres Josephine e Constantia filhas de um coronel viúvo e doente que vem a falecer. Com a morte do pai, as filhas experimentam o conflito da ausência de um "referencial protetor". Mais ainda, experimentam a presença do fantasma do pai, ou seja, do que esse lugar representa no inconsciente dessas mulheres agindo como elemento cerceador. Lembremos de que as mulheres de classe média do século XIX só saíam da casa dos pais para formar uma outra família, portanto, a idéia era de que sempre haveria uma figura masculina que as guiassem: "- não consigo imaginar como eles conseguem sobreviver." (Constantia falando sobre os camundongos).

A falta de uma figura masculina desestabiliza e provoca na personagem uma inquietação, uma preocupação que a faz refletir sobre a sua vida. O trecho não mostra explicitamente a articulação que Constantia faz entre os camundongos e a sua existência, mas o fato de exteriorizar a sua incompreensão diante da sobrevivência dos camundongos que vivem livres, independentes de um provedor, acaba deixando uma lacuna a ser preenchida por ela mesma visto que o discurso deixa transparecer um questionamento e, portanto, uma instabilidade na condição em que sempre esteve envolvida.

As Filhas do Falecido Coronel é um texto predominantemente dialogal e preocupa-se em apresentar os embates e sensações experimentados pelas duas personagens femininas: os medos, as angústias, os mecanismos de evasão, a frustração, a insegurança, enfim reações que se exteriorizam através de situações que, por sua vez, refletem os impasses internos de cada uma. O primeiro deles se dá no início do conto quando Constantia e Josephine discutem o uso do luto dentro de casa. Acontece a primeira dúvida e a primeira resolução a tomar. Um problema do cotidiano se apresenta como um árduo obstáculo para duas mulheres tão acostumadas a não tomar resoluções. No entanto, o que parece relevante apontar é o caminho que a autora vai traçando para as duas mulheres que partem de uma situação/problema e o esforço de superá-lo. Através dessa operação se dá o amadurecimento das personagens, a tentativa de construir uma consciência de identidade feminina. Através da morte do pai essas mulheres vão se firmando e re-construindo as suas vidas . As dúvidas podem partir de situações do dia-a-dia como a escolha do cardápio para almoço até as mais complexas como a demissão ou não da empregada (Kate). Mas até chegar a esse ponto, as personagens insistem, resistem, desistem, retomam posições; esse processo que a autora procura enfocar traduz a experiência do feminino em apre(e)nder o mundo através dos próprios olhos, das suas próprias ações, partindo das suas próprias reflexões dando certo ou não.

As superações e enfretamento de Josephine e Constantia acontecem paulatinamente durante a narrativa. Em uma das partes do texto, elas resolvem entrar no quarto do pai que sempre as proibiu de estar lá pela manhã porque não gostava de ser incomodado. A cena é descrita por Katherine Mansfield com habilidade ao apresentar a força de atração e repulsa que se instaura nas mulheres ao entrar em um espaço "proibido":

Josephine só conseguia olhar fixamente. Ela tinha o sentimento mais extraordinário de que acabara de escapar a algo simplesmente terrível. Mas como conseguira explicar a Constantia que papai estava dentro da cômoda? Ele estava na gaveta superior, com os lenços e as gravatas, ou na seguinte, com as camisas e pijamas, ou na inferior, como todos os seus ternos. Estava observando dali, escondido - logo atrás da maçaneta - pronto para saltar.

O espaço estranho causa medo; os objetos naquele quarto remetem ao pai, presentificando-o. Contudo, o contato com os pertences do pai enfocada como uma transgressão a "lei paterna" as fortalece. Não seria essa mesma sensação de sentir-se "fora", de não pertencimento que nós experimentamos já que as coisas que estão a nossa volta nomeadas não representam a nossa experiência mas sim a do Outro? Não seria a ousadia em conhecer/ler/transgredir esse universo que nos torna mais conscientes de nós mesmas, do nosso lugar e assim poder desenvolver/resolve nossas estratégias/angústias? "Fez então uma daquelas coisas surpreendentemente ousadas que fizera apenas umas duas vezes na vida antes... "

Os mecanismos de evasão que as personagens vivenciam, revelam a tensão desencadeada por situações de impasse, mesmo as mais corriqueiras. Há trechos no conto que mostram como Josephine e Constantia utilizam artifícios em momentos de embates. A evasão ou os desvios parecem ser recorrentes quando as duas têm algum obstáculo, algum problema que não conseguem resolver, pelo menos a curto prazo. Um deles era a presença incômoda da enfermeira que cuidara do pai até a sua morte. Livrar-se da hóspede "de hábito enlouquecedor" parecia tarefa muito difícil, levando as filhas do coronel a, esporadicamente, evadir-se:

Josephine ficava muito vermelha quando isso acontecia, e pregava seus pequenos olhos em feitio de contas na toalha, como se visse um minúsculo inseto estranho se arrastando por sua trama. Mas o rosto comprido e pálido de Constantia se alongava e ficava carrancudo, e ela desviava os olhos para longe - longe - para o deserto, onde aquela fila de camelos se desenrolava como um novelo de lã...
(...)
A enfermeira Andrews esperava, sorrindo para ambas. Seus olhos vagavam espiando tudo por trás dos óculos. Constantia, em desespero, retornou a seus camelos.

O camelo é comumente considerado símbolo de sobriedade (...). É o atributo da temperança. O camelo significa também o veículo que conduz o homem de um oásis a outro, atravessando o deserto. Este, por sua vez, representa o lugar afastado de Deus, portanto, afastado do Pai. Um lugar de solidão, de dificuldades, mas de perseverança e de fortalecimento. A experiência de Constantia é de solidão, mas também, ao mesmo tempo, de busca de sentido em um outro lugar imaginado.

As filhas do coronel tomam consciência de suas atitudes quando aparece a figura do realejo, tão desprezada pelo pai. A primeira reação que elas têm é de encontrar uma moeda para livrar-se do realejo, o que acontecia sempre quando o pai estava presente. Nesse momento, elas param e lembram-se de que não é preciso, não há nada que as impeça de escutar o realejo. Dá-se nesse momento a morte do pai:

(...)E também Josephine esqueceu-se de ser prática e sensata; ela sorriu leve, estranhamente. Sobre o tapete indiano incidiu um retângulo de luz solar vermelho-pálida; vinha e sumia e vinha...e ficava, escurecia - até brilhar quase dourado.
(...)
Uma fonte perfeita de notas borbulhantes vibrou do realejo, notas redondas, brilhantes, dispersando-se despreocupadamente.

Constantia ergueu as grandes mãos frias como que para segurar aquelas notas, mas depois as deixou cair. Dirigiu-se a cornija da lareira, até o seu Buda favorito. E a imagem de pedra dourada, cujo sorriso sempre lhe transmitia um sentimento tão estranho, quase uma dor, mas contudo uma dor agradável, parecia hoje mas do que sorrir.

Escutar o realejo significa transgredir a Lei. As filhas começam a se dar conta da alegria de estar livre do domínio paterno, alegria de poder decidir. Simbolicamente, as sensações experimentadas encontram-se no trecho representadas pelo tapete e pelo Buda. O tapete embora, para o ocidente, seja meramente um objeto de decoração, para o oriente há todo um valor "mágico". Cada desenho, formas e cores têm um sentido. O tapete representa a morada, a casa e as cores que incidem sobre ele - o vermelho e o amarelo ("dourado") - significam, respectivamente, alegria e poder. Posso relacionar o tapete como sendo a própria vida, o corpo dessas mulheres que experimentam plenamente, pela primeira vez, a alegria e o poder de reger as suas vidas. A oscilação da luz em ir e vir, traduz o processo íntimo que se opera na personagem até experimentar plenamente, naquele momento, a alegria em sentir-se livre. O Buda também representa poder e sabedoria. "(...) o que significava isso? O que era isso que ela estava sempre querendo? A que levava tudo isso? E agora? E agora?"

Ela se afastou do Buda com um dos seus gestos vagos. Dirigiu-se para onde Josephine estava parada de pé. Queria dizer uma coisa para Josephine, uma coisa terrivelmente importante, sobre...sobre o futuro e o que...

- Você não acha que talvez... - começou.
Mas Josephine interrompeu.
- Eu estava me perguntando se agora... - ela murmurou. Detiveram-se; esperaram uma pela outra.
- Prossiga, Con - disse Josephine.
- Não, não Jug; falo depois - disse Constantia.
- Não, diga o que você ia dizer. Comece você - disse Josephine.
- Eu...eu preferiria ouvir o que você tinha a dizer primeiro - disse Constantia.
- Não seja absurda, Con.
- Realmente, Jug.
- Connie!
- Oh, Jug!
Uma pausa. Então Constantia disse debilmente:
- Não posso dizer o que ia dizer. Jug, porque esqueci o que era...que eu ia dizer.
Josephine ficou em silêncio por um momento. Fixou uma grande nuvem onde antes estivera o sol. Depois respondeu brevemente:
- Eu também esqueci.

Foi necessário transcrever o final do conto inteiramente porque mostra claramente o itinerário dessa auto-descoberta da condição/situação em que as personagens se encontram. Os questionamentos, os recuos revelam que o caminho está por fazer-se. Interessante mostrar as experiências contraditórias dessas mulheres que diante da possibilidade de se sentirem felizes com a ausência do pai sentem-se também culpadas por essa sensação. Essa culpa se apresenta através da voz do Anjo da Casa que no texto aparece como a grande nuvem que tenta esconder o sol, o prazer da descoberta de exercer autonomia. Esses avanços e recuos, a ousadia e o medo são alternadamente vivenciados por essas mulheres, sem predomínio de um sobre o outro. O momento da oscilação evidencia uma rachadura no modelo androcêntrico, uma abertura para que esse modelo seja questionado.

Katherine Mansfield utiliza-se da rememoração para enfocar a busca de identidade das personagens femininas. A autora lança mão desse mecanismo porque entende que é o caminho que devemos percorrer para re-vermos as nossas relações, as sensações experimentadas, os discursos que foram internalizados para que, a partir dessas experiências, nós possamos nos entender e aprender a administrar os nossos medos, angústias e por fim, tentar destruir "o fantasma".

Contudo, é durante a projeção do pensamento para o futuro que as personagens encontram dúvidas, hesitam. É o momento em que o Anjo da Casa aparece para fazê-las recuar; o momento de inseguranças e de incertezas. Essas mulheres nunca precisaram pensar no futuro porque era assegurado pelo homem: a princípio pelo pai e em seguida pelo marido (que elas não tiveram). Agora elas se encontravam sem esses referenciais. Tal situação era ao mesmo tempo assustadora e excitante.

A pausa das duas personagens no final do conto, após diversas suspensões intermitentes do pensamento, remete a uma cumplicidade. "Esquecer", no contexto, não significa não lembrar-se, mas não ser necessário dizer talvez porque a linguagem não dê conta de traduzir as experiências da mulher. As hesitações e o silêncio aparecem como o lugar da não-palavra:
Josephine ficou em silêncio por um momento. Fixou uma grande nuvem onde antes estivera o sol. Depois respondeu brevemente:

- Eu também esqueci.

O conto de Katherine Mansfield, ao discutir a construção do feminino na sociedade patriarcal inglesa, nos oferece pistas que nos permitem ler o texto em uma perspectiva de gênero, isto é, evidenciando e refletindo sobre uma das relações de poder e de dominação: os lugares feminino e masculino. A autora mostra, pelo final do conto, que a experiência/consciência feminina de sua identidade é um processo que se constrói paulatinamente não com um ritmo freqüente e progressivo, pelo contrário, a autora nos mostra que essa experiência oscila em idas e vindas, isto é, com avanços e recuos, com um olhar no passado e outro no presente.

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